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A saga pelo Zolgensma (e o que muda com o registro na Anvisa)

Maria Carolina Kramer

Parece ficção. Em um dia relativamente comum, os pais consultam o médico para saber o que há de errado com a saúde de seu bebê. E descobrem uma doença genética, a atrofia muscular espinhal  (AME), em seu tipo 1, que causa com a morte de neurônios motores devido à redução nos níveis da proteína SMN, que é necessária para a sobrevivência do neurônio. 

Descobrem ainda que a única perspectiva de cura é a aplicação do remédio mais caro do mundo, o Zolgensma (onasemnogene abeparvovec-xioi), cuja dose custa US$ 2,1 milhões, cerca de R$ 11,5 milhões, e que este deve ser aplicado até os 02 anos de idade (critério americano).

A AME afeta 1 a cada 10 mil nascidos, dos quais cerca de 45% a 60% dos casos são AME do tipo 1, forma mais grave da doença, sendo a principal causa de mortalidade infantil decorrente de uma doença monogenética.

Quem tem esta condição experimenta  fraqueza, hipotonia, atrofia e paralisia muscular progressiva, que se não tratada, leva à morte rapidamente.

Há alguns anos, as perspectivas eram ainda piores. O Spinraza (nusinersena), medicamento incorporado ao SUS apenas em 2019, retarda os efeitos da falta de proteína, o que permite que a criança recupere alguns movimentos, mas apenas atrasa o processo de atrofia, sem ser cura efetiva. O custo deste medicamento também não era barato, R$ 318 mil por dose, sendo necessárias 07 doses no primeiro ano, depois uma a cada 4 meses.

O Zolgensma, por outro lado, usa um vírus para transportar uma proteína para dentro da célula, de forma que ocorre uma correção do DNA afetado, uma cura genética nos casos de tipo 1, representando efetiva chance de vida normal, com maior expectativa de vida.

Em termos econômicos, 36 doses do Spinraza custam o equivalente a dose única do Zolgensma. Em 10 anos o uso do Spinraza implica em mais custos do que a utilização do remédio mais caro do mundo.

Nesta semana tivemos a notícia da aprovação do registro do Zolgensma, mas, em termos práticos, o que isso muda para as famílias dos pacientes?

Isso significa que a importação do medicamento independe da análise (e do prazo de análise) do pedido excepcional de importação para uso pessoal , os quais dependem da opinião de técnicos que avaliam a eficácia e segurança do produto, bem como o registro em outros países.

Significa, ainda, a possibilidade de obtenção, por decisão judicial deste medicamento. A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

(i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

(ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;

(iii) existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência.

Desta forma, a partir de agora, qualquer pedido judicial de Zolgensma passa a ter o terceiro requisito cumprido.

Indubitavelmente, o maior obstáculo seria a demonstração de ineficácia do Spinraza em longo prazo. Estudos apresentados na reunião anual da Academia Americana de Neurologia de 2018 calcularam o tempo mediano até a morte ou ventilação permanente para os participantes que iniciaram o Spinraza foi de 73 semanas. Entre os participantes que receberam placebo, o tempo mediano até a morte ou ventilação permanente foi de 22,6.

Assim, a superioridade do Zolgensma  em termos de saúde, vida e, portanto de dignidade da pessoa humana seriam, em tese, suficientes para permitir que as crianças passassem a receber do Poder Público este fármaco, em vez do Spinraza, até a incorporação administrativa pelo SUS, pela via judicial.

Se os benefícios para os pacientes de AME tipo 1 e menos de 02 anos  é claro, qual a situação para os pacientes com outros tipos ou maior idade?

Atualmente esses pacientes são tratados com Spinraza em regime de compartilhamento de risco. Assim, elas recebem suas doses apenas caso clinicamente demonstrarem que se beneficiaram das doses, e apenas enquanto houver progresso.

Entretanto, as manifestações destes tipos de atrofia de medula espinhal se apresentam mais tarde, e no Brasil o Zolgensma  é recomendado para pacientes até 02 anos de idade, seguindo o parâmetro americano. Na Europa, o critério adotado é de peso (até 21 quilos). Ademais, por enquanto, o registro do medicamento contempla apenas a AME tipo 1, e o Poder Público é desobrigado de custear tratamentos  de uso não autorizados pela Anvisa.

Portanto, sem alterações no registro que permitam o uso para os pacientes de AME tipos 2 e 3, somado à limitação temporal (2 anos) dificilmente haveria sucesso em demanda para estes pacientes, ainda que movida por compaixão (quando não há sucesso em nenhum outro tratamento e a morte é inevitável), conforme procedente do STF (RE 657718).

Desta forma, enquanto aguardam-se novos estudos, ampliando a idade e peso dos beneficiários, bem como abrangendo os demais tipos, apenas as crianças dentro das especificações do registro na ANVISA tendem a ser beneficiadas em demandas judiciais.

Maria Carolina Kramer

OAB/SP 375.737. Formada em Economia pela PUC-SP e em Direito pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Pós-graduada em Advocacia Empresarial pela PUC-MG e em Direito Civil pela EBRADI. Pós-graduanda  em Direito Aplicado aos Serviços de Saúde pelo Centro Universitário Gama Souza. Sócia fundadora da Kramer e Dias Sociedade de Advogados (OAB/SP 22.236).

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